Médicos são médicos e cirurgiões-dentistas são cirurgiões-dentistas.

Plano de saúde é uma coisa, convênio dental é outra coisa. Seu médico não pergunta se você está usando fio dental e seu dentista não pergunta se você está se exercitando. No continente americano, de forma geral,  a boca é tratada separadamente do resto do corpo, uma situação bizarra que Mary Otto explora em seu novo livro Teeth: The Story of Beauty, Inequality, and the Struggle for Oral Health in America (algo como: Dentes: A História da Beleza, da Desigualdade e da Luta pela Saúde Bucal na América).

Não é estranho se especializar no tratamento de uma parte do corpo. Médicos fazem isso o tempo todo. O estranho é o divórcio entre o cuidado bucal e o cuidado geral dentro do sistema de ensino da Medicina, redes profissionais, prontuários médicos e sistemas de pagamento, de modo que o dentista não é apenas um tipo específico de médico, mas outro profissional completamente à parte.

Mas o corpo não assinou este acordo, e os dentes não sabem que eles devem manter seus problemas confinados à boca. Esta separação leva a consequências reais: os problemas dentários não tratados pioram, e às vezes matam.

Segue parte da entrevista com a autora Mary Otto sobre o cisma entre Odontologia e Medicina, como aconteceu, por que foi assim e quais são as consequências que perduram até hoje. Ela fala dentro do contexto nos EUA, mas aqui no Brasil não foi muito diferente. Ao longo da entrevista vou complementando as informações, entre colchetes [ ], com o contexto brasileiro, ok?!

Dentistas são médicos.

Dentistas são médicos. Ou não?

Entrevista com a autora

Julie Beck (jornalista): Voltemos à origem de como a Odontologia e a Medicina se separaram em primeiro lugar. É algo, agora, normal pra nós. Mas na verdade é realmente estranho… houve uma época em que o atendimento odontológico estava integrado com os cuidados médicos?

Mary Otto (autora): Via de regra, sempre foram atividades separadas. Cuidar dos dentes começou como um tipo de comércio. Nos dias do cirurgião-barbeiro, as habilidades do dentista estavam entre um dos muitos serviços pessoais oferecidos por eles, como as sangrias, a ventosaterapia e as extrações dentárias. Extrair e restaurar dentes eram encarados como desafios puramente mecânicos. Esse tipo de profissional atuou na primeira parte da história dos EUA. Paul Revere, por exemplo, era um denturist (algo como um técnico em prótese dentária), ele fazia joias e também dentaduras.

A Odontologia virou profissão mesmo em 1840, em Baltimore.

[No Brasil nossa profissão existe oficialmente desde o decreto 9311 de 25 de outubro de 1884, quando foi instituído o primeiro curso de Odontologia brasileiro. Existiam apenas faculdades de Medicina na época, e aí foi feito o seguinte: as faculdades de Medicina passaram a oferecer, também, 3 cursos anexos: Farmácia, Ginecologia e Obstetrícia e Odontologia. Então eram 4 formações médicas distintas: médico, farmacêutico, ginecologista / obstetra e dentista. O curso de Odontologia criado em 1884 foi transformado em faculdade de Odontologia em 1925, continuando anexa a faculdade de Medicina, que pertencia à Universidade do Rio de Janeiro. Em 1933, a Faculdade de Odontologia tornou-se autônoma, sendo inaugurada em 1934].

Surgia então a primeira faculdade de Odontologia do mundo, uma iniciativa dos dentistas práticos Chapin Harris e Horace Hayden. O casal entrou em contato com  dos médicos da faculdade de medicina da Universidade de Maryland, em Baltimore, com a ideia de adicionar o ensino da Odontologia ao curso de Medicina, porque eles realmente acreditavam que a Odontologia ia além de um desafio mecânico, e que merecia status como profissão. Mas os médicos, segundo a história nos conta, desdenharam da proposta, alegando que os dentes têm pouca importância. Esse evento é lembrado como “the historic rebuff” (“a rejeição histórica”). Não se toca muito no assunto, mas esse “fora” é visto como um marco que definiu as relações entre a educação médica e odontológica, assim como um divisor de águas no que tange à forma diferenciada como a Medicina e a Odontologia são tratadas pelos sistemas de saúde. Dentistas ainda perfuram e preenchem dentes, enquanto médicos só enxergam o corpo humano das tonsilas palatinas para baixo. É assim até hoje.

Beck: Parece que, desde a rejeição histórica, os dentistas se acomodaram e preferiram ficar separados dos médicos. Você também acha isso? Por que não tratamos os dentes como parte do conjunto do corpo humano?

Otto: Essa questão foi levantada várias vezes ao longo dos anos. Há quase um século, na década de 1920, um químico / biólogo chamado William Gies, um visionário, visitou todas as escolas de Odontologia dos EUA e do Canadá, em nome da Fundação Carnegie, pedindo que a Odontologia fosse considerada uma parte essencial do sistema de saúde. Ele dizia: “A Odontologia não pode mais ser aceita como mera técnica dentária”. Ele queria que a saúde bucal e a saúde geral fossem integradas no mesmo sistema, mas aí a Odontologia organizada lutou para manter a separação da Medicina. Os dentistas emergiram como defensores da autonomia profissional e da independência da Odontologia do sistema de saúde. O ex-cirurgião geral David Satcher disse o mesmo que Gies nos anos 2000, quando emitiu o relatório Saúde Bucal na América.“Devemos reconhecer que a saúde bucal e a saúde geral são inseparáveis”. E parece que as coisas estão mudando… mas muito devagar.

Beck: Então você acha que a razão pela qual os dentistas queriam ficar separados era realmente apenas uma questão de independência profissional?

Otto: Sim. Era uma questão de mercado. Autonomia profissional.

Beck: É interessante como essa separação perdura até hoje, porque isso definiu o comportamento dos seguros de saúde, do acesso aos cuidados odontológicos, de todas essas coisas. Você pode nos dar uma visão geral sobre as consequências práticas de se manter a Odontologia como uma profissão à parte da Medicina?

Otto: Um dos exemplos mais dramáticos é que mais de um milhão de pessoas por ano vão parar nas emergências dos hospitais por causa de problemas dentários. Não aqueles com origem em traumas, como em acidentes de trânsito, por exemplo, mas dores de dente e outros problemas que deveriam ser tratados em um consultório odontológico. Essas “visitas” custam ao sistema mais de um bilhão de dólares por ano. Sem contar que é raro que esses pacientes recebam o atendimento adequado, porque nem sempre há dentistas nos hospitais. O paciente recebe a prescrição de um antibiótico e de um analgésico e é aconselhado a visitar um dentista. Mas muitas dessas pessoas não fazem isso. Então, há um lembrete dramático aqui de que saúde bucal é parte da saúde geral, já que problemas dentários levam à emergência do hospital mas, quando se chega lá, não há quem atenda essas pessoas, pois médicos nada sabem de Odontologia. Há também o fato de que registros médicos e registros dentários são mantidos separadamente.

Um pesquisador da área odontológica disse, certa vez, numa reunião em que eu estava presente: “De volta aos dias da peste bubônica, a medicina entendeu por que as pessoas morrem. Nós, dentistas, não entendemos por que os dentes morrem. Há essa lacuna na forma como abordamos as doenças bucais, como a cárie, por exemplo. Nós ainda tendemos a encará-la como se fosse um problema mecânico, que precisa ser consertado, em vez de uma doença que precisa ser prevenida e tratada. E muitas vezes enxergamos a cárie através de uma lente moral… nós julgamos as pessoas que padecem de doenças bucais como se tivessem falhas morais, ao invés de pessoas que sofrem de uma doença”. [Ouch, achei forte… e muitas vezes verdadeiro].

Beck: O convênio odontológico também costuma estar separado do convênio médico, sendo muitas vezes opcional [E muito mais barato… e às vezes vem de “brinde”!]. Como, politicamente, o atendimento odontológico veio a ser visto como opcional?

Otto: Esse assunto foi discutido recorrentemente ao longo do século 20. A Odontologia organizada, como a Medicina organizada, combateu os cuidados de saúde nacionalizados em muitas frentes e testemunhou contra a praticidade de ampliar os benefícios para todos os cidadãos. Todos os planos de saúde (públicos ou privados) que surgiram nesse entremeio deram ao cuidado dentário um tipo de status auxiliar, como se fosse um benefício marginal.

Beck: É intrigante que, por um lado, o atendimento odontológico seja tratado como “opcional”, mas, por outro lado, como você observa no livro, exista uma pressão social por se ter dentes perfeitos, especialmente na América, especialmente entre os ricos [Quanto mais ainda no Brasil, entre pobres e ricos, onde usar aparelho ortodôntico confere status…]. Portanto, a Odontologia Estética faz muito dinheiro. Você acha que a pressão social para ter dentes perfeitos é uma espécie de exacerbação da desigualdade?

Otto: Eu acho que em algum nível, sim. Nós colocamos muita ênfase em sorrisos perfeitos e há muito campo pra se ganhar dinheiro nessa área. Um dentista com quem falei enquanto trabalhava nesse projeto disse: “Ninguém quer fazer as coisas básicas”.  [Tipo, ninguém mais quer fazer raspagem e instrução de higiene bucal, todo dentista agora quer colocar facetas extra-brancas, de anatomia duvidosa, de canino a canino. Escrevi e saí correndo. 😀 ]. Claro que há muito mais dinheiro envolvido em procedimentos estéticos complexos… mas, por outro lado, existe uma grande necessidade de cuidados básicos. Um terço do país enfrenta dificuldade pra ter acesso apenas aos procedimentos preventivos e restauradores mais rotineiros, aqueles que mantêm as pessoas saudáveis.

Beck: Eu me pergunto se o valor colocado no sorriso perfeito, “de Hollywood”, é em parte consequência de tantas pessoas não terem acesso aos cuidados dentários básicos, então dentes brancos e bem alinhados são uma maneira muito clara de sinalizar riqueza. Mais claro do que se todos tivessem acesso à prevenção e tivessem dentes sadios…

Otto: Pode ser. Isso é muito interessante. O conceito do “sorriso americano perfeito” começou na época da depressão em Hollywood. Havia um jovem dentista chamado Charles Pincus que tinha consultório odontológico em Hollywood. Ele percebeu, assistindo os filmes, que os atores e as atrizes de cinema que não tinham dentes perfeitos, como James Dean, que cresceu em uma fazenda e usava dentaduras, assim como Judy Garland. Ele começou, então, a trabalhar dentro dos estúdios. Por exemplo, ele criou pequenas próteses instantâneas que se encaixavam nos dentes da pequena Shirley Temple, por isso nunca a vimos trocar seus dentes decíduos. Durante toda a sua trajetória no cinema, mesmo na fase do “patinho feio”, ela sempre teve um conjunto perfeito de dentes branquinhos e perolados [Agora vocês entenderam porque o Snap-on Smile é chamado de “sorriso de Hollywood”, não?].

Mas você tem razão: a qualidade dos dentes separa os bem nutridos dos famintos… e isso é impressionante. Os seis dentes superiores anteriores são chamados popularmente de “The Social Six” [Olha lá…], e ter esses 6 dentes brancos e bem alinhados é símbolo de status não só nos EUA, mas no mundo todo. É um marcador de sucesso.

Beck: Na sua opinião o melhor seria fazer uma reforma da Odontologia em paralelo à Medicina ou o mais adequado seria integrar a Odontologia e a Medicina de uma vez?

Otto: Tem que envolver ambas. Já há esforços no sentido de colocar higienistas dentais nos centros de saúde qualificados em nível federal que servem comunidades rurais pobres. O assunto tem chamado a atenção de deputados, governadores e funcionários da saúde pública interessados em reduzir os custos para todos os tipos de cuidados em saúde. O argumento é que se está gastando demais na emergência hospitalar com problemas que podem ser prevenidos e tratados em outro âmbito. Por isso o incentivo financeiro  na disponibilização de cuidados preventivos e restauradores de rotina para as pessoas.

Beck: Uma tentativa de desfazer alguns dos danos da rejeição histórica…

Otto: Sim, não é curioso?

(Traduzido por mim e adaptado do original: Why Dentistry is separate from Medicine)

Panorama brasileiro

Do ponto de vista científico, por qualquer ângulo – anatômico, morfológico, fisiológico, etc. – não dá pra separar a Odontologia da Medicina… e o motivo é claro: Odontologia É Medicina. Nos EUA os graduados em Dentistry não são apenas dentists, e sim DDS (Doctor of Dental Surgery) ou DMD (Dentariae Medicinae Doctor), portanto ambos como Doctor. Somente médicos, cirurgiões-dentistas e médicos veterinários são chamados de Doctors nos Estados Unidos, porque são reconhecidos publicamente como médicos.

Do ponto de vista profissional, nos EUA essa separação institucional parece ter valorizado o dentista. Aqui no Brasil, o efeito foi contrário: os cursos de Odontologia abandonaram a sua matriz médica: deixamos de ser médicos estomatologistas e nos tornamos cirurgiões-dentistas, profissionais reconhecidos publicamente em “tratar dentes”, do jeitinho que o médico francês Pierre Fauchard (*) idealizou: como habilidosos artesãos.

Odontologia não… Medicina Orofacial

Habilidades manuais são bem-vindas a qualquer CD. Não há como negar. Mas não é isso que faz o dentista, e sim muito estudo, treinamento e base científica no que diz respeito a todo o sistema estomatognático. Entendendo que dentista não cuida só de dente, surgiu um movimento no sentido de alterar o nome da nossa profissão de Cirurgião-Dentista para Médico Orofacial.

A petição no Avaaz já tem mais de 21.000 assinaturas, sustentando o seguinte:

“Na prática o cirurgião-dentista é um médico especialista em medicina oral. [A intenção é] equiparar a nomenclatura utilizada no Brasil com a utilizada em Portugal e demais países lusófonos, adotando os nomes de “Médico Orofacial” e curso de “Medicina Orofacial”, por exemplo, em substituição aos nomes de “Cirurgião-Dentista” e curso de “Odontologia”. Com o título de Médico Orofacial, esse profissional será enquadrado no grupo de médicos nos vários PCCRs e PCCSs municipais e estaduais aprovados no país, passando a ser tratado e remunerado nos mesmos níveis dos demais profissionais médicos. As nomenclaturas “dentista” e “odontólogo”, já obsoletas, causam confusão generalizada nos vários PCCRs e PCCSs, havendo a contratação e enquadramento de profissionais com os três nomes diferentes. Lembrando que os Conselhos Regionais e o Federal continuam os mesmos, mudaria apenas o nome. Ex.: Conselho Federal de Medicina Orofacial”.

E você… acha o quê? Concorda? Discorda? Sugere outra coisa? Comente! 

(*) O médico francês Pierre Fauchard criou a figura do cirurgião-dentista em 1728, com a publicação de sua famosa obra Le Chirurgién Dentiste Aux Traité Des Dents. Ele retirou da competência do então médico estomatologista as atividades relacionadas à “arte dentária”, tudo relacionado aos dentes, como cirurgias dentárias, restaurações dentárias, doença periodontal, próteses dentárias, higiene bucal, etc.. Foco nas habilidades manuais e na imagem de artesão, deixando meio pra lá a parte científica da coisa.
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