Só pode ser amor essa sua insistência em falar de Odontologia.

Falar de Odontologia é ótimo

Como é! Eu falo muito. Só que eu sou dentista, então o que eu falo, falo porque entendo do assunto. Não é o caso dela. “Bom, então ela pode chamar alguém que entende de Odontologia e fazer uma entrevista, seria muito legal!”. Realmente!

Não gente, ela não me chamou. 😀 Porque se tivesse chamado qualquer dentista, ele(a) muito provavelmente não confirmaria suas crenças pessoais – e “polêmicas” – sobre higiene bucal. Ela chamou um médico. Por quê? Porque passa credibilidade (médico né, minha gente… sabe de tudo) e porque ele não entende do assunto o suficiente pra fazer oposição (e no caso específico desse médico, ele parece ter convicções semelhantes às dela, então…). 😉

A entrevista foi feita no You Tube, e o convidado foi o Dr. Fabricio Dias, médico antroposófico (*). O Dr. Fabricio foi chamado pra falar sobre higiene bucal em crianças.

Quero deixar bem claro aqui que não estou desmerecendo o médico em questão ou a classe médica, mas é sabido (e eu conversei com uma amiga minha que é médica antes de afirmar o que eu vou afirmar, pra não ser injusta) que a formação médica não inclui qualquer noção sobre formação dos tecidos dentários, cariologia e etc.. O acadêmico de Medicina vê alguma coisa de diagnóstico bucal e é isso aí. Dente, nada.

A entrevista

Muito foi dito na tal entrevista, tudo de forma superficial, como esperado. O foco foi óbvio: desmerecer a importância do uso do flúor na escovação. Todo mundo sabe que Bela Gil escova os dentes (dela e dos filhos) com cúrcuma e argila, opções que ela acha mais naturais. Ok, direito dela. Mas suas crenças são só suas, as evidências científicas caminham na direção oposta, o que está bem explicadinho aqui nessa nota de esclarecimento da Associação Brasileira de Odontopediatria. Considerando o seu alcance junto ao público leigo, é temerário que ela insista em falar de Odontologia em seus canais… por isso tô achando que é amor, mesmo. 😀

A entrevista completa você confere abaixo:

Logo no início da entrevista o Dr. Fabricio comenta que o excesso de flúor no organismo no período de formação dos dentes pode levar à fluorose, o que é a mais pura verdade. Bela Gil comenta, então, que a sua filha tem uma mancha branca no incisivo central e diz: “… minha filha sempre usou pasta sem flúor, mas eu tenho certeza que essa mancha é por causa [do flúor que tem] na água”. Em seguida ela faz comercial de um gel dental sem flúor (que deve ser o motivo do vídeo, no fim das contas) e o convidado concorda com tudo.

A questão é que qualquer dentista sabe que se a mancha no esmalte é num dente só, não pode ser fluorose… afinal, sendo uma alteração de ordem sistêmica, a fluorose afeta TODOS os dentes que estão se formando durante o período em que ocorreu a ingestão e a absorção do flúor. Uma mancha isolada em um dente não pode de forma alguma ser atribuída ao consumo de água fluoretada. Pode ser cárie, pode ser hipoplasia de esmalte… enfim, cada caso é um caso. Mas fluorose não é.

Em seguida ela afirma – e o dr. confirma – que “… na higienização de dentes de leite é importante que a pasta não tenha flúor, porque o flúor já está presente na água, nos alimentos”. Não é o que a ciência diz, moça. Vejam um trecho da nota da ABO (que está completa no link anterior):

“O dentifrício fluoretado tem sido recomendado por órgãos governamentais, associações profissionais e diversas instituições de saúde em todo o mundo porque seu uso para prevenir e controlar a cárie dentária, tanto na dentição decídua como na dentição permanente, está fortemente baseado em evidência de estudos clínicos controlados. Em acréscimo, o uso de dentifrício fluoretado não impõe risco à saúde geral”. Passa a régua e fecha a conta.

E eles continuam conversando, externando suas opiniões pessoais como se fossem ciência e consenso. Não vou ficar aqui apontado as mancadas do vídeo todo, mas você pode eleger a sua preferida nos comentários. Fique à vontade. 🙂

Pra não ser injusta…

É preciso citar que Bela Gil já conversou com uma dentista sobre higiene bucal… a Dra. Karla Dias, que é sua dentista. A colega tem uma visão bem particular de algumas questões, mas com muito do que ela fala eu concordo plenamente. Ela reconhece os benefícios do flúor, porém a conversa flui no sentido de dar ênfase a que essa substância, em excesso, é tóxica. Algum dentista discorda disso? Claro que não. Aí a questão é definir onde está o excesso, e podemos ficar horas falando sobre isso. 🙂

Fato: como a cárie é uma doença multifatorial, removido um dos seus fatores causadores, ela não ocorre. A Dra. Karla afirma que “… removendo-se [mecanicamente] a placa bacteriana, não há cárie” e também que “… o flúor não cura a cárie”. E ela tem razão! Acho que a dissonância com a maioria dos dentistas está na importância – e até na necessidade – da inclusão do flúor na água de abastecimento e sobre a sobreposição das fontes de flúor e tal. A Dra. conta que morou 1 ano na Suécia, e lá as políticas de saúde pública e a cultura da população em relação à saúde [bucal] são bem diferentes daqui… então eu até entendo seu ponto de vista, embora ache que não dá pra aplicá-lo no contexto do Brasil (mas concordo que, se a cultura é ruim, é preciso mudá-la… e estamos aí pra isso). Enfim… de forma geral, a entrevista é muito legal. 🙂 Você pode assistir aqui: Primeira Parte / Segunda Parte 

Leia também: Dúvidas jogadas na Internet sobre Odontologia, no Dicas Odonto

(*) Medicina antroposófica é uma forma de medicina alternativa criada na década de 1920 por Rudolf Steiner e Ita Wegman. A prática baseia-se em noções de ocultismo e na filosofia espiritual de Steiner, a qual denominou antroposofia.
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