A pauta do dia: o bate-papo entre duas estudantes de Odontologia. O assunto? Métodos não-ortodoxos de condicionamento de pacientes pediátricos. Falando assim, fica até bonito. Mas:
Vamos refletir sobre o diálogo acima? A professora está certa: é importante ter postura firme frente às crianças durante o atendimento, porque, se não, não tem atendimento. Falo isso como dentista e como mãe. Mas “berrar”, pra mim, é o contrário de ser firme… é descontrole, é perder a postura. Aí fico aqui pensando… será que essa professora “berrou” mesmo? Acho tão improvável que isso tenha acontecido num ambiente clínico… ainda mais acadêmico. E vamos lembrar que a conversa acima é totalmente informal, tendo sido flagrada (literalmente!) no Facebook. Anyway…
Criança não precisa de motivo pra chorar. Sim, criança chora em profilaxia, mano. Ela chora porque tem medo, ela chora porque não quer abrir a boca, ela chora porque tá a fim, ela chora porque sim. Quando a criança chora, as opções são:
( ) Procurar acalmá-la para poder prosseguir com o atendimento.
( ) Distraí-la com algum elemento lúdico.
( ) Marcar a consulta para um outro dia.
( ) Dar uma “furadinha” na gengiva dela.
Se você marcou X na furadinha…
Está fora de discussão considerar essa uma estratégia válida, quero que isso fique bem claro. Foi uma péssima, uma PÉSSIMA ideia. Funcionou? Parece que sim! Mas a que custo?
Eu tenho outro blog, o Blog Medo de Dentista, o qual eu realmente espero que você já conheça. 😉 Meu trabalho lá, basicamente, é desconstruir o estereótipo do dentista-carrasco, aquele cara que, tipo assim, “ama” furar a sua gengiva. Diante disso, você consegue imaginar a minha consternação com esse diálogo surreal? Todo dia recebo dezenas de e-mails de gente com medo, implorando por ajuda, por uma sugestão de como enfrentar esse malvado, o dentista. Sabe quando foi que a maioria dessas pessoas começou a ter medo de dentista? Na infância. Olha o impacto que uma atitude impensada pode causar!
Voltemos ao colóquio. Não bastasse a moça da “furadinha” contar a história como se fosse vantagem, a amiga diz que AMOU a ideia de furar! Furar é tudo de bom! Ela já tem o costume de não ser muito “fofa”, e tem dado certo… mas furar… dude, great ideia! O.o E o absurdo, que geralmente ficaria restrito aos blogs de Odontologia, já foi parar na Revista Crescer. Sabe aquela sensação de vergonha alheia? Tô assim.
Onde é que eu quero chegar? Precisamos, com urgência, repensar.
- Repensar a forma como a Odontologia é ensinada. Eu não vou julgar a professora citada na conversa por dois motivos: ela não está aqui pra se defender e nós não sabemos se ela realmente agiu como descrito pelas acadêmicas. Quero crer que não, que “berrar” seja apenas um termo infeliz usado como forma de enfatizar uma ideia numa conversa informal. Mas acho que essa é uma oportunidade incrível de reexaminar o que se ensina na faculdade. O que vejo, cada vez mais, são dentistas neófitos com – potencialmente – grande habilidade técnica, cheios de vontade de ganhar dinheiro. Logo. Considerando o investimento que a formação em Odontologia demanda, é compreensível. Mas, amigo, sério mesmo que você quer ser dentista só porque “dá dinheiro”? Porque ó, consigo pensar aqui em inúmeras maneiras honestas de se ganhar dinheiro além da Odontologia (todas envolvem muito trabalho, é claro). Considere outras opções. Pode ser melhor pra você e, certamente, será melhor para os seus ex-futuros pacientes.
. - Repensar a forma como o paciente é visto. O paciente não é uma boca, não é um punhado de dentes, não é um obstáculo entre o dentista e os seus honorários. Ele é um ser humano que sente dor, que tem problemas de autoestima com seus dentes feios, que sente medo porque, quando era criança, furaram a gengiva dele pra ele ficar quieto durante a profilaxia. Uma palavra: empatia. Exercitem-na.
. - Repensar o objetivo de ser cirurgião-dentista. Por que você se formou em Odontologia? É isso. Reflita.
O CROSP se pronunciou na seguinte nota sobre o episódio:
“O Conselho Regional de Odontologia de São Paulo – CROSP, considerando a divulgação realizada na rede social “Facebook”, de conhecimento público, onde supostas alunas de odontologia abordam de maneira indigna e inadequada questões relacionadas ao atendimento odontológico de crianças, vem ESCLARECER:
Os cursos de graduação em Odontologia, por meio de seus professores, buscam capacitar o acadêmico às práticas de prevenção, ao tratamento e à cura dos problemas relacionados à saúde bucal, em todas as áreas, inclusive a Odontopediatria.
Sendo certo que não há qualquer recomendação técnica no sentido de “furar a gengiva do paciente”, por exemplo, para estabelecer um vínculo de respeito, confiança e colaboração, o CROSP repudia toda e qualquer conduta que visa estigmatizar os procedimentos odontológicos e a figura do cirurgião-dentista como um profissional que provoca dor ou que se relaciona com seus pacientes de forma desumana ou antiética.
O CROSP está adotando medidas pertinentes para averiguar a veracidade dos fatos e a identificação dos citados, em prol da ética, da proteção da população e da valorização da Odontologia”.
* * *
Concluindo, gostaria de dar alguns conselhos às duas estudantes.
Primeiramente, quanto mais a gente fala, maior é a chance da gente falar merda. É proporcional e ninguém está imune.
Dito isso, entendam que, pra ser dentista, é preciso ter postura, e eu não estou falando só de ser firme com criancinhas assustadas, mas em ter porte e posicionamento de cirurgião-dentista, aquele profissional da área da saúde que se ocupa do sistema estomatognático. E o desenvolvimento dessa postura começa na faculdade.
Como diz a minha amiga Celia Barral, tem coisa que a gente não diz nem para o espelho… imagina em rede social! Não se exponham no Facebook. Não exponham os outros no Facebook. Postem apenas vídeos de gatinhos fofos no Facebook. É pra isso que o Facebook serve.
E, por último, do fundo do meu coração, imagino a bagunça que deve estar a cabeça e a vida de vocês agora. Soube que os seus perfis na rede social tiveram que ser removidos, porque houve de tudo, desde xingamentos até ameaças de morte. Furar gengivas de criancinhas não é bonito, mas muito menos bonito – e crime, se não estou enganada – é ameaçar matar pessoas.
Não é assim que se salva a Odontologia. Revoltem-se, mas não percam a razão.
Leia também outras opiniões sobre o assunto:
Blog DicasOdonto –> “Não fazer mal”, Odontologia, acadêmicos e Redes Sociais
Blog Odontostalgia –> Sobre “interpretação”
Vida de Dentista –> Sobre gengivas furadas, trairagem e falar demais
[…] Odontodivas –> Uma palavra: empatia. Exercitem-na. […]
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Tomara que isso seja algo MUITO RARO, mas eu já vi professor “berrando” com aluno em ambiente clínico, sim. Inclusive na frente do paciente! Triste! 🙁
Excelente texto! Parabéns!
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